Pesquisa encontra indícios de irregularidades de matéria-prima em amostras de produtos cárneos

Pesquisa realizada no Laboratório de Biologia Molecular da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (Famez/UFMS) encontrou indícios de matéria-prima não declarada em amostras de linguiças artesanais e hambúrgueres industrializados comercializados no município de Campo Grande.

O projeto de pesquisa “Desenvolvimento e avaliação de métodos biotecnológicos para detecção de fraudes por substituição em produtos de origem animal” tem por objetivo utilizar ferramentas moleculares laboratoriais, como a PCR (Reação em Cadeia da Polimerase), técnica de laboratório utilizada para fazer milhões de cópias de uma região específica do DNA, para avaliar a autenticidade de produtos de origem animal, nesse caso, de alimentos cárneos.

Os pesquisadores analisaram produtos elaborados a partir de espécies usuais de comercialização: bovino, suíno e aves. Apenas 16% de 40 amostras de linguiças artesanais obtidas em dez supermercados diferentes, em dois períodos distintos, estavam de acordo com o que era declarado no rótulo pelo fabricante. E de três marcas de hambúrgueres industrializados, somente uma atendia as especificações declaradas na rotulagem.

“Temos observado que no Brasil, as fraudes com relação a substituição de matéria-prima ainda são pouco identificadas. Por exemplo, o consumidor compra uma linguiça em que o vendedor ou fabricante declara ser produzida exclusivamente com carne bovina, mas constata-se que também há carne de ave ou suína que não foi declarada”, diz o professor Carlos Alberto do Nascimento Ramos (Famez), coordenador da pesquisa.

Como a identificação dessas substituições é muito difícil apenas pela observação do produto, e dependendo do processamento que o alimento sofreu acaba tornando-se ainda mais indecifrável – os pesquisadores conseguem fazer essa avaliação a partir da análise de DNA de diferentes espécies na composição do alimento.

“Se temos uma linguiça que de acordo com o rótulo do fabricante é exclusivamente fabricada com carne suína, podemos verificar se existe apenas DNA suíno na amostra, o que comprovaria que o fabricante informou a composição correta. E podemos verificar também se há DNA de ave, bovino ou outra espécie não declarada”, completa.

Então, a ideia do projeto é utilizar as ferramentas existentes no Laboratório de Biologia Molecular para fazer a identificação e mensurar qual a frequência de substituições ou não conformidades com os alimentos analisados.

“Estamos começando com embutidos e com alguns produtos reestruturados como hambúrgueres, tanto industrializados como artesanais, comercializados em Mato Grosso do Sul.

As linguiças foram obtidas pelos pesquisadores em dez estabelecimentos varejistas comerciais de Campo Grande (MS) durante um determinado período, e apenas as que eram fabricadas naqueles estabelecimentos.

“Compramos essas linguiças em dois períodos distintos para garantir que íamos conseguir pegar dois lotes diferentes. E de cada um desses produtos fizemos a análise em três pontos diferentes. Fizemos a extração do DNA e depois a análise por PCR para saber qual era a composição. Como parâmetro, utilizamos a declaração do vendedor no açougue dos supermercados. Temos observado algumas situações que não gostaríamos de ter encontrado”, explica Carlos.

No caso das linguiças artesanais, os pesquisadores encontraram em quase todas as linguiças de bovino, DNA de suíno e aves. Houve ali adição intencional ou pelo menos a contaminação daquele produto com carne diferente, segundo o coordenador.

“Nas linguiças de suíno encontramos DNA de aves, mas dificilmente bovino, o que é esperado, pois quando existe substituição a ideia é que se utilize uma carne de menor valor em um produto de maior valor comercial. O que nos impressionou é que apenas 16% das 40 amostras analisadas estavam de acordo com o declarado pelo vendedor”, expõe.

Hambúrguer

Na pesquisa com hambúrguer industrializado, foram analisadas três marcas distintas, não necessariamente fabricadas em de Mato Grosso do Sul, mas que também são comercializadas no estado. Somente uma marca estava acordo com a rotulagem. Em todas as outras foram encontrados resíduos de DNA de outras espécies além da declarada.

Não necessariamente trata-se de “fraude”, segundo o pesquisador, pois essa ocorre quando há uma adição intencional deliberada de carne de uma espécie em um produto em que não deveria ter sido adicionado.

“Em algumas situações, como por exemplo, em uma indústria que processa diferentes produtos, e durante o processamento, no mesmo equipamento passam espécie bovina, suína e aves, pode haver contaminação entre as matérias-primas de produtos diferentes. Como estamos utilizando uma técnica (PCR) muito sensível, resquícios podem ser detectados, oriundos dessa contaminação. Embora não seja uma fraude, essa contaminação pode indicar uma falha no processo de fabricação que deve receber mais atenção por parte dos fabricantes”.

Para alguns produtos processados, como hambúrguer, a indústria muitas vezes compra carne mecanicamente separada (CSM) para fabricação. Segundo o professor, o problema pode estar na cadeia produtiva, com a carne chegando já com resquícios de carnes de outras espécies para a produção final do produto.

Nas três marcas analisadas pelo Laboratório, os fabricantes declaravam que os hambúrgueres eram 100% feitos com carne bovina. Em duas, foram encontrados DNA de carne suína e de frango.

“A nossa ideia é fazer essa análise, verificar a situação do estado com relação a esses produtos, e identificar o que tem mais ou menos problema. Além disso, popularizar o uso da técnica de PCR e demonstrar sua versatilidade de aplicações. Esse tipo de ferramenta (PCR) poderia ser adotada pelas próprias indústrias para ter um melhor controle de sua matéria-prima e dos produtos que fabricam, passando ao consumidor uma imagem de maior credibilidade”, diz.

Normativas

No caso dos produtos artesanais, seria necessário que os Serviços de Inspeção Municipal começassem a estabelecer algumas regras, segundo o professor Carlos. Para muitos produtos existe um regulamente técnico a ser seguido que é definido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento por meio do Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade (RTIQ).

“Geralmente os produtos artesanais, são produzidos e comercializados em nível municipal, e na maioria das vezes não passam por inspeção federal ou estadual. Para conseguir um mínimo de controle e assegurar a inocuidade dos produtos para a população, seria necessário que os municípios estabelecessem normativas básicas de produção e até fiscalização rígida e frequente desses produtos”, afirma.

Além do consumidor ter o direito de receber o produto adequado pelo qual está pagando, em algumas situações pode haver ainda problemas com relação à saúde e até questões religiosas, já que carnes, como a suína, não são ingeridas por seguidores de algumas religiões.

“Por mais raro que seja, sabemos que existem pessoas que tem alergia ou intolerância à carne suína, a carne de aves. Como não avaliamos a questão microbiológica, não estamos falando em produtos impróprios para o consumo, mas com relação à questão das alergias, podem sim causar algum problema”.

Os pesquisadores estão agora analisando outras marcas e lotes dos produtos, inclusive salsichas e linguiças industrializadas. Além disso, agora também irão procurar DNA de soja nos produtos cárneos. Futuramente, lácteos e pescados também serão verificados.

“Em alguns produtos, existe a indicação de que pode haver a presença de soja. Então, estamos verificando se a composição está ou não de acordo com a rotulagem”.

De forma geral, os pesquisadores querem mostrar que existe um problema e que as empresas podem utilizar essa informação para se beneficiar, realizando periodicamente a análise dos seus produtos e divulgando esses resultados, o que deve elevar a credibilidade das empresas junto aos consumidores.

“Estamos começando com os cárneos, devido ao perfil do estado, mas sabemos que ocorre problemas com pescados também, como no caso do bacalhau, será bacalhau mesmo que o consumidor compra?”.

Para o professor, ainda existe um estigma muito grande com relação a todas as técnicas que utilizam DNA, mas ele salienta que hoje a reação em cadeia da polimerase (PCR), é uma técnica extremamente barata e simples, com poucos equipamentos e investimentos, é possível ser feita pela própria indústria.

A pesquisa também tem a participação da professora Marjorie Toledo Duarte, da área de inspeção de carnes da Famez, além de alunos de graduação em iniciação científica dos cursos de Medicina Veterinária e Zootecnia.

Texto: Paula Pimenta