Esquentadinho, representado por uma animação vermelha, quase que pegando fogo, a emoção “O Raiva” no filme Divertida Mente bem expressa como ficam as pessoas quando se veem diante de situações de injustiça, indignação e/ou impedimento.
Presente em todos os indivíduos, a raiva é uma das cinco emoções que movem o ser humano, mas na maioria das vezes não é bem compreendida e pouco se sabe qual a melhor maneira de manejá-la, principalmente em crianças e adolescentes.
Essa emoção ímpar foi investigada e trabalhada pela professora e pesquisadora da Faalc Aline Henrique Reis em Doutorado e em pesquisas sobre os fatores associados à desregulação da raiva na infância e na adolescência.
A raiva é uma emoção que aparece diante de situações de injustiça. “Eu me sinto injustiçado, quando eu tenho um obstáculo diante de um objetivo. Por exemplo, não ter permissão do cuidador para poder ia festa de um amigo. Ao mesmo tempo, ela nos dá energia para buscar os nossos objetivos, como quando compramos um produto com defeito e vamos atrás para exigir os nossos direitos de consegui-lo em perfeitas condições”, explica a professora Aline.
Só que as pessoas não sabem lidar com a raiva, assegura a pesquisadora. “Nas pesquisas realizadas percebemos que os cuidadores (pais, avós, tios, e outros responsáveis), em relação a raiva, não sabem bem como reagir. Acabam punindo, batendo, gritando, brigando ou até ignorando. Então, geralmente, a raiva de um gera raiva no outro. E naturalmente as pessoas não aprendem a lidar com essa emoção e não sabem quais estratégias de regulação emocional utilizar”, expõe.
Estratégias
E o que é uma estratégia de regulação emocional? “Se estou sentindo raiva, eu tenho que identificar a minha emoção, identificar a intensidade, entender o que gerou essa emoção e escolher uma estratégia de regulação: fazer uma respiração, avaliar os meus pensamentos”, ensina.
E que seria uma reação ideal diante de qualquer emoção: a validação. Como validar as emoções é algo que pais ou outros cuidadores devem ensinar às crianças e adolescentes.
“Primeiro, o filho aprende vendo os exemplos dos pais e depois pela maneira como eles lidam com ele. Se os pais estão tristes, chateados e com raiva e decidem beber, mexer no celular, ver TV, o filho tende a fazer igual. Depois, quando o filho pergunta ao pai se está bem, e ele diz que não é nada, ele aprende que as emoções não são bem-vindas, que precisam ser abafadas”.
Da mesma forma, minimizar a emoção de quem está com raiva, com um “larga de bobagem, isso não é nada”, não ajuda solucionar o ímpeto da emoção.
“Perder um brinquedo, pode não ter grande valor econômico, mas tem o valor afetivo. Se eu digo que isso não é nada, estou minimizando a emoção da criança. O processo ideal é validar, perguntar a ela o que está sentindo, porque está sentindo dessa maneira e deixar claro que ela pode contar com o cuidador”, aponta Aline.
A validação seria a primeira estratégia mais adequada. Num segundo momento, parte-se para a resolução de problemas, identificando o que pode ser feito diante da situação que gerou essa emoção de raiva.
“Essa é uma estratégia bem bacana porque a criança vai aprender na sua vida adulta como lidar com as situações que geram a emoção. Mas se for direto para as soluções de problemas, pula-se essa etapa de entender que as emoções fazem parte da vida e a criança passa a ver as emoções como algo não muito bom”, explica.
A teoria diz que as emoções são processos que envolvem a fisiologia do corpo, têm duração breve, a não ser que se fique pensando sobre, e gera reações e pensamentos congruentes.
A emoção, como está associada a preservação da espécie, tem de gerar uma reação mais rápida, um processamento mais automático. A raiva, dentro dessas emoções básicas, mobiliza, gera mais energia nos punhos, nas pernas, para lutar pelos direitos, segundo a pesquisadora. É uma emoção que todos sentem, mas é mal vista.
“Qual seria o outro extremo: uma criança que sente raiva com muita frequência, tem o comportamento associado ao agressivo. A pessoa tem o direito de sentir raiva, mas não tem o direito de machucar, agredir ou quebrar. Isso é o que tem de ser ensinado”, coloca Aline
Na atualidade, afirma a pesquisadora, as pessoas têm uma ideia disseminada de que as emoções não devem ser sentidas. Retira-se o foco da emoção e o coloca em outras coisas como comida, álcool, droga, eletrônicos, jogos, celular, tevê, entre outros.
“A raiva vem muito da frustração também. Os cuidadores da atualidade vem de uma geração que provavelmente passou por algumas privações, dificuldades financeiras na infância. Ambos os pais saem para o mercado de trabalho, tem menos tempo em casa e uma dificuldade grande de ver o filho sofrer”, aponta.
Mas são os cuidadores na primeira (até três anos), segunda (três a seis anos) e terceira infância (seis a doze anos) as pessoas que mais devem frustrar os filhos na fase do desenvolvimento, principalmente para ensiná-los a lidar com a frustração.
“A criança vai externalizar a raiva e o cuidador tem de acolher dizendo: eu entendo, sinto muito, mas não! Infelizmente, muitos não conseguem tolerar gerar tristeza, frustração, raiva nos filhos”.
O processo é o mesmo em qualquer idade. Para os pequenos, os pais devem assinalar ao filho que ele está sentindo uma emoção, nomear essa emoção, indicar o que provavelmente gerou essa emoção e fazer alguma coisa em relação a isso. Quando a criança cresce, questiona-se o que ela está sentindo e o que pode ser feito para lidar com isso, apresentando posicionamentos como “E se fizer isso, o que vai acontecer?”.
Com o passar do tempo, busca-se da criança ou do adolescente a possibilidade de solução, ao mesmo tempo que se acolhe, demonstra presença. “Precisamos por o cérebro dele para funcionar. À medida em que ele pensa em estratégia de solução, debate-se com ele sobre as possibilidades que devem ser aplicadas e acompanhadas pelos pais/cuidadores”.
O problema é a falta de conversa, assegura Aline. “Há uma preciosa correlação entre se conversar sobre as emoções e ter boas estratégias de regulação emocional, mas isso pouco acontece”.
Pesquisas
Em Doutorado, Aline Reis trabalhou com o manejo da raiva, propondo um grupo de intervenção com crianças de escola pública para ensinar estratégias de regulação emocional, a partir da identificação da emoção.
Participaram crianças com nível de raiva bem exacerbado e estratégia de comportamento agressivo. Foram utilizadas técnicas de regulação da raiva, mas os problemas estavam exacerbados diante das situações de negligência.
“Os direitos básicos das crianças não estavam sendo atendidos, então o problema delas não era “estou com raiva e não sei o que fazer; era eu tenho direitos que não estão sendo atendidos e isso gera uma raiva muito grande e não sei o que fazer com isso”.
Essas crianças tinham relação ruim com seus cuidadores. No geral, eram maltratadas, punidas e por isso apresentavam uma raiva mais que justificada, porque sofriam negligencia, ameaças, abuso físico e/ou psicológico.
A professora Aline também orientou pesquisas na segunda e terceira infância e com adolescentes, para verificar como eles lidavam com a raiva e como as mães a percebiam em seus filhos.
A pesquisa mostrou que na segunda infância, como as crianças são menores, as mães tendem a validar mais e usar técnicas de distração, o que não tem grande resultado com os maiores.
“Com criança pequena, os cuidadores conseguem acolher mais, colocar no colo, dar beijo, dar carinhos. À medida que a criança vai crescendo, isso diminui. Na terceira infância praticamente nenhuma mãe revela a validação”, aponta.
Os adolescentes foram questionados sobre o sentir raiva e com que frequência isso aconteceria. A pesquisa mostrou que as mães, quando perguntadas sobre essa emoção do filho, identificaram muito menos a ocorrência de raiva, do que os jovens manifestaram. “Elas não se davam conta, ou porque passam pouco tempo juntos, ou porque o adolescente se isolava ou não externalizava”. “Eles não têm estratégia de regulação emocional, ou seja, ventilam, põem para fora batendo porta, gritando, xingando, ou se isolam, vão para o quarto, para o celular. Raramente buscam ajuda de adulto ou colegas da mesma idade. Vemos que as mães pouco falaram de validar, de lidar com essas emoções”.
Diante dessa realidade, uma grande preocupação atual dos profissionais da área é o aumento de ações como a automutilação – que é uma estratégia de regulação atualmente utilizada por crianças e, principalmente, adolescentes, em especial disseminadas na web.
“Quando a criança/adolescente se corta, seu cérebro vai liberar endorfina para de certa maneira aplacar a dor física e emocional. O organismo se organiza para lidar com essa dor, gera um alivio, e ele acaba entrando num círculo vicioso”, explica Aline.
A mutilação está relacionada a situação de angustia, de não saber como resolver os problemas. Outra estratégia frequentemente usada diante de situações de angústia na contemporaneidade são as tentativas de suicídio, cada vez mais frequentes.
O adolescente tem como características dessa fase do desenvolvimento cerebral a impulsividade e a busca de estimulação imediata. “Então se ele tem um meio letal, numa situação de impulsividade, que é característico da adolescência, mesmo não querendo morrer, acaba por tentar o suicídio. Acompanhamos o aumento dos índices de automutilação, tentativa de suicídio e efetivação do suicídio. Isso é ainda mais preocupante quando vemos cuidadores que minimizam essa dor, desqualificam. O adolescente acaba não tendo o suporte para conversar num momento de fragilidade”, completa.
A estratégia final para a intervenção para a automutilação é também a regulação emocional. Num primeiro momento o psicólogo trabalha como pode lidar com as emoções intensas vivenciadas, o que fazer ao invés de se cortar, até ajudá-lo a sanar o problema que leva à automutilação.
As mulheres tentam mais o suicídio, os homens efetivam mais porque usam meios mais letais, como arma de fogo. Tudo ganha proporções maiores, segundo a especialista, diante de questões de bulliyng e aumento da intolerância, seja religiosa, de cor, sexualidade ou outras que são recorrentes na atualidade.
Escolas particulares, segundo a professora, já trabalham programas, com treinamento de professores, encontros esporádicos com os pais, atividades de internet para fazer em casa e desenvolver na escola, dentro de um planejamento anual com vistas a trabalhar a educação socioemocional.
Já as escolas públicas têm prazo até 2020 para inserir essas habilidades socioemocionais dentro do currículo. “Só que não há psicólogos nas escolas e os professores não tem uma formação para trabalhar esse tipo de interação. A formação do professor tem de perpassar tanto o treinamento de como você pode aproveitar a situação que acontece naquele momento, e fazer a regulação, até o manejo do ocorrido, mas para isso é preciso ter preparo”.
Para um programa como esse funcionar, afirma Aline, é preciso envolver alunos, professores e família. Não há resultados em se trabalhar com a criança/adolescente, se os cuidadores apenas sabem punir ou se justificar.
“Muitas vezes, quando crianças e adolescentes externalizam a emoção, os cuidadores não as entendem. Os pais querem muito mais se defender do que compreender e abrigar. A ideia não é se justificar, mas avaliar o que pode ser melhorado para acolher a demanda da criança ou do adolescente”, diz.
Paula Pimenta