Levantamento inédito sobre legado de Santos Dumont reúne mais de 7 mil bens culturais

O advogado especialista em direitos autorais e Doutor Honoris Causa pela UFMS, Pedro Machado Mastrobuono, realizou levantamento inédito de mais de 7,2 mil bens culturais legados por Santos Dumont, dispersos em dezenas de acervos públicos e privados no Brasil e no exterior. O trabalho foi realizado durante o pós-doutorado em Antropologia Social, concluído na Universidade no último ano. Como resultado do seu esforço documentos, desenhos, maquetes, fotografias e demais registros produzidos pelo inventor foram reunidos, organizados e analisados sob uma abordagem antropológica.

“A motivação para essa pesquisa nasceu da minha experiência anterior na elaboração de catálogos raisonné, que são reconhecidos como os registros científicos mais completos da produção de um artista. Tive o privilégio de desenvolver dois dos cinco catálogos raisonné existentes no Brasil: o de Alfredo Volpi, por meio do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, do qual sou sócio-fundador e ex-presidente, e o de Leonilson, onde atuei como diretor do projeto e membro do comitê de catalogação. No primeiro, organizamos cerca de 4 mil obras e, no segundo, aproximadamente 2,6 mil”, relatou Mastrobuono.

Com base nessa vivência, o advogado, que também é museólogo e gestor cultural, começou a vislumbrar a possibilidade de utilizar a metodologia para catalogar obras de personalidades da história e outras áreas do conhecimento. “Essa vivência despertou em mim uma inquietação intelectual: seria possível aplicar a mesma metodologia, originalmente pensada para catalogar artistas plásticos, a outros tipos de personagens históricos ou profissionais notáveis? Foi assim que surgiu a ideia de pesquisar o legado documental de Santos Dumont. Eu já tinha a informação de que seu acervo era bastante disperso — espalhado por diversas instituições no Brasil e no exterior — e que não havia ainda um esforço sistemático de consolidação e levantamento completo de tudo o que ele produziu: plantas, desenhos, maquetes, documentos, correspondências, fotografias pessoais e registros de seus voos”, explica.

Mastrobuono conta que, após um ano do início formal da pesquisa, a metodologia – catálogo raisonné – mostrou-se aplicável ao legado do aviador. “A surpresa maior foi o volume encontrado: enquanto esperava reunir algo em torno de mil bens culturais, acabei identificando um total de 7.280 itens, distribuídos por 23 acervos diferentes — públicos, privados, nacionais e internacionais. O resultado evidencia não só a grandiosidade do legado de Santos Dumont, mas também o potencial de utilização dessa metodologia em outros campos da história e da cultura”, destaca.

A pesquisa

De acordo com ele, as etapas do trabalho seguiram uma metodologia precisa. “A primeira fase foi a de levantamento bibliográfico. Comprei toda a bibliografia disponível sobre Santos Dumont e iniciei um mapeamento minucioso de tudo o que já havia sido citado nas obras impressas como parte de seu legado — desenhos, projetos, peças técnicas, fotografias, correspondências e demais documentos. Essa etapa é essencial, pois, como em um catálogo raisonné de artista plástico, é necessário primeiro reunir a catalografia existente, conhecer o histórico de exposições, os interlocutores, o percurso criativo, os insumos utilizados e os registros que documentam esse processo. No caso de artistas visuais, buscamos entender com quem o artista pintava, para quem escrevia, onde comprava tintas e pincéis. No caso de Santos Dumont, o equivalente foi mapear os documentos que mencionam seus projetos, aviões, experimentos, materiais e redes de contato”, detalha.

“A segunda etapa consistiu em contatar cada uma das instituições que constavam nos levantamentos bibliográficos. Era fundamental identificar o que já havia sido digitalizado, o que poderia ser acessado remotamente e o que exigiria visita presencial. Vale lembrar que os acervos estão espalhados por 23 instituições, tanto no Brasil quanto no exterior — incluindo bibliotecas nacionais, museus, arquivos governamentais e coleções privadas”, explica Mastrobuono. “Na terceira etapa, passei à obtenção efetiva do material digital. Muitos dos arquivos estavam disponíveis apenas em baixa resolução, então foi necessário negociar com as instituições o envio de imagens em alta qualidade e, paralelamente, trabalhar no preenchimento das fichas catalográficas de cada item. Criamos, então, um banco de dados estruturado, com todos os registros técnicos e as imagens correspondentes”, completa.

O momento final da pesquisa foram as visitas presenciais. “Aquilo que não pôde ser acessado digitalmente precisou ser consultado in loco. Nesses casos, fiz pessoalmente tanto o preenchimento das fichas catalográficas quanto o registro fotográfico das peças, garantindo a completude do banco de dados e a padronização das informações”, lembra Mastrobuono.

“Ao longo da pesquisa, encontrei diversos desafios, mas destaco quatro aspectos que considero os mais marcantes — alguns de ordem prática, outros de ordem emocional e até ética”, comenta o advogado. “O primeiro grande obstáculo foi a dificuldade de acesso aos acervos nacionais. Infelizmente, muitas instituições brasileiras ainda não estão preparadas para receber pesquisadores acadêmicos de forma estruturada. São raras aquelas que oferecem condições adequadas de consulta, com protocolos organizados, atendimento célere e digitalização de seus acervos. Em contraste, instituições estrangeiras já dispõem de plataformas digitais eficientes: o pesquisador se cadastra, acessa documentos de forma ágil, com orientação e respeito à natureza do trabalho científico”, expõe.

Segundo ele, foram necessários inúmeros telefonemas, sem contar a burocracia imposta por algumas instituições durante a fase de catalogação. “No Brasil, muitas vezes foi necessário insistir diversas vezes por telefone, aguardar retornos que não vinham, explicar repetidamente a natureza da pesquisa, e mesmo assim esbarrar em entraves burocráticos ou falta de acolhimento institucional. Isso evidencia o quanto ainda precisamos avançar na conscientização de que bens culturais são objetos legítimos e fundamentais de pesquisa acadêmica”, relata.

“O segundo ponto que me marcou profundamente foi constatar o desconhecimento generalizado, inclusive entre brasileiros, sobre a verdadeira dimensão humana e ética de Santos Dumont. Pouco se fala, por exemplo, sobre sua postura generosa e desinteressada: ele jamais patenteou qualquer uma de suas invenções, pois acreditava que tudo o que produzia deveria servir à humanidade. Foi um homem de espírito altruísta, que doou metade do prêmio Deutsch — equivalente hoje a um prêmio milionário — aos pobres. Com a outra metade, pagou o resgate de ferramentas penhoradas em casas de penhor, para que operários pudessem retomar sua atividade profissional”, conta o advogado.

Matrobuono pode constatar também que Dumont foi também um homem profundamente orgulhoso de sua nacionalidade brasileira. “Tanto que, ao ser frequentemente tratado como francês por viver em Paris e ter ascendência europeia, passou a assinar seu nome com um sinal matemático: Santos = Dumont, para reforçar a força simbólica de sua brasilidade. Essa faceta ética e humana de Santos Dumont foi negligenciada por décadas, e minha pesquisa talvez tenha sido a primeira a lançar um olhar antropológico sobre esse legado”, destaca.

“O terceiro desafio foi o impacto emocional causado pelo mergulho profundo na vida pessoal de Santos Dumont. Acompanhar sua trajetória de generosidade e genialidade, ao mesmo tempo em que se observa seu adoecimento e a melancolia dos seus últimos anos, é algo que toca profundamente qualquer pesquisador. A empatia com esse ser humano extraordinário, que passou de ídolo global à solidão de uma doença que o limitou e levou à depressão, trouxe uma carga emocional inesperada para o trabalho. Foi um exercício de pesquisa, mas também de sensibilidade humana”, revela.

Ele revela que dentre as visitas, uma teve impacto diferente. “Um dos momentos mais simbólicos e impactantes dessa trajetória foi o contato direto com o coração de Santos Dumont, que hoje está preservado no Museu Aeroespacial, no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. Trabalhar ao lado desse símbolo tão literal e ao mesmo tempo tão carregado de significado foi uma experiência única. Esses quatro pontos — o despreparo institucional, o desconhecimento sobre a grandeza humana de Dumont, o impacto emocional da pesquisa e o contato com o símbolo físico de sua memória — foram os verdadeiros desafios desse percurso. E, paradoxalmente, também as partes mais ricas da experiência”, fala.

Achados inusitados

“Durante a pesquisa, alguns aspectos bastante inusitados e pouco conhecidos da vida de Santos Dumont me surpreenderam profundamente. Um deles é quase anedótico: ele é considerado em Paris como o inventor do delivery. Isso porque, ao se preparar para seus voos de balão, costumava encomendar refeições sofisticadas em um restaurante de renome — o Maxim’s, tradicional casa da alta gastronomia parisiense — para que fossem entregues antes de suas decolagens. Entre as iguarias que ele levava a bordo estavam sanduíches especiais, caviar e até mesmo garrafas de champanhe. Esse refinamento e originalidade revelam um lado curioso e até irreverente do inventor, que unia ciência, elegância e prazer em suas aventuras aéreas”, conta.

Para o advogado, outro traço da personalidade de Dumont notável foi sua atuação na defesa do meio ambiente. “Talvez o fato mais admirável — e ainda mais desconhecido — seja sua atuação precursora na defesa do meio ambiente cultural e natural. Em uma visita ao Paraná, Santos Dumont conheceu as Cataratas do Iguaçu, primeiramente pelo lado argentino e, em seguida, pelo lado brasileiro. Ao perceber que aquele território extraordinário estava sob propriedade privada, ele ficou profundamente incomodado. Cancelou compromissos e seguiu, a cavalo, até a sede do governo do estado — então chamado de Presidência do Paraná — para convencer o presidente da província a desapropriar a área e criar ali um parque público de visitação”, explica.

“O argumento de Dumont foi impressionantemente moderno: afirmou que o fluxo de turistas sustentaria o parque, chamando-o de uma ‘indústria sem chaminés’. Essa expressão, visionária para a época, antecipava o conceito contemporâneo de turismo sustentável. Hoje, quem visita o Parque Nacional do Iguaçu encontra uma estátua de corpo inteiro de Santos Dumont, justamente em reconhecimento por ter sido um dos primeiros idealizadores desse patrimônio natural brasileiro”, complementa.

De acordo com Mastrobouno, esse episódio revela uma faceta surpreendente do inventor: além de gênio da ciência e símbolo de generosidade, ele também foi um pioneiro da consciência ecológica. “Num tempo em que os termos ‘sustentabilidade’ e ‘ecologia’ sequer existiam no vocabulário público, Santos Dumont já intuía o valor da preservação ambiental e da cultura como elementos fundamentais da identidade de um povo. Sua sensibilidade nesse campo reforça ainda mais sua grandeza como ser humano e seu papel insubstituível na história do Brasil”, afirma.

Expectativas

Pedro Mastrobuono organizou um banco que reúne os bens culturais já identificados para facilitar o acesso ao imenso acervo e, também, para incentivar novos estudos sobre o aviador. “Como a base foi desenvolvida segundo a metodologia rigorosa de um catálogo raisonné, tem como propósito ser uma fonte objetiva e padronizada de informações. Não há ali qualquer juízo de valor ou corte curatorial. Nenhum dos bens recebe destaque especial, todos são tratados com o mesmo grau de importância e com a mesma linguagem técnica. Essa neutralidade metodológica é essencial para que futuros pesquisadores — sejam historiadores, biógrafos, cientistas, antropólogos ou estudiosos de outras áreas — possam construir suas próprias interpretações a partir de uma base confiável e isenta”, salienta.

“Diferentemente de livros ou exposições culturais, que partem sempre de uma tese e organizam o conteúdo com base em uma narrativa curatorial, o catálogo raisonné — e, por extensão, esse banco de dados — não busca ilustrar nenhuma ideia prévia. Ele apenas oferece, com transparência, a totalidade da produção documental reunida, sem privilegiar aspectos estéticos, simbólicos ou temáticos. Isso pode soar um pouco árido para quem está mais habituado ao formato de livros interpretativos, mas é justamente essa objetividade que garante sua validade científica”, acrescenta.

Sobre Pedro Machado Mastrobuono

Atualmente, Mastrobuono é presidente da Fundação Memorial da América Latina. Foi presidente do Instituto Brasileiro de Museus e representante titular da Comissão do Fundo Nacional da Cultura, membro do Comitê Gestor do Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça. Ele é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de História da Arte Italiana e Literatura Italiana com ênfase em Renascimento pelo Instituto Italiano de Cultura. Também atua como conselheiro do Museu Judaico de São Paulo e do Projeto Leonilson. É membro fundador e ex-presidente do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna; membro do Internacional Council of Museums; do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde também atuou na Câmara Setorial de Bens Móveis e Integrados, e na Câmara Setorial do Patrimônio Material; além de membro do Conselho Deliberativo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand;e do Conselho do Museu Lasar Segall.

Gestor no setor cultural e artístico nacional, atuante em favor da defesa do patrimônio cultural brasileiro, já conquistou importantes prêmios e honrarias, entre elas a Comenda Câmara Cascudo, a maior condecoração cultural concedida pelo Senado Federal – antes dele, apenas sete brasileiros haviam sido agraciados e a indicação ao Prêmio Ciccillo Matarazzo pela Associação Brasileira de Críticos de Arte, como a personalidade brasileira mais atuante na cultura.

Texto: Vanessa Amin

Fotos: Acervo pessoal