Tradução possibilita contato com contos de ficção especulativa de autores africanos

Ficção científica, terror e fantasia fazem parte da ficção especulativa, um gênero que se popularizou no século 20 e tem conquistado espaço no mercado editorial do Brasil e de outros países. No continente africano, muitos escritores adotaram esse gênero e parte do fruto da sua produção é publicado em língua inglesa e francesa. Por meio do projeto de extensão Tradução de contos da Revista Omenana: Speculative Fiction Magazine, professores e estudantes da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (Faalc) fizeram um extenso trabalho de tradução desses contos, inéditos em língua portuguesa, especialmente o português brasileiro.

“A revista publica, quase que exclusivamente em inglês. Queríamos trazer esses autores africanos ou que estão em outros lugares, mas são de origem africana, para o conhecimento do público brasileiro. Eles não chegam aqui por meio de grandes editoras ou programas de literatura, então é um trabalho exclusivo nosso”, comenta o professor da Faalc e coordenador do projeto, Elton Furlanetto. “É uma maneira de visibilizar essas pessoas que são desconhecidas e, de alguma maneira, apresentar isso para o público brasileiro que talvez não teria outra oportunidade de conhecê-los e de conhecer essas narrativas que são muito marcadas pelas questões culturais específicas desses países africanos, já que temos autores da Nigéria, Quênia e Tanzânia, por exemplo”.

“A partir das questões que vão aparecendo, surgindo, aprendemos e descobrimos muitas similaridades com o que acontece aqui no Brasil, sobre com a forma como a ciência é vista, muito misturada, por exemplo, com questões de religiosidade. Então, é muito diferente do que a gente está acostumado. […] Essa revista trata de ficção especulativa, que seria aquela ficção de imaginação, fantasia, ficção científica. Imaginamos sempre a ficção científica, fantasia estadunidense ou inglesa, como aquela que tem fada, duende. Ali são outros personagens, uma outra mitologia que aparece nas histórias e que, de alguma maneira, trazem para a gente esses outros modos de se relacionar com o mundo”, relata.

De acordo com o professor, para o curso de Letras, trata-se de uma parceria internacional muito benéfica. “Eu acho que é fundamental para a gente construir diálogos, construir pontes, construir esses laços. As pessoas que participam do projeto não são só da UFMS, tem uma professora da Federal de Santa Maria, um pós-graduando e dois graduandos de Alagoas que, por meio de grupos de pesquisa, a gente convidou e, por ser um projeto de extensão, eles também se juntaram a nós. Inicialmente, fizemos mais a questão da tradução dos contos, depois, um trabalho em cima de formação do tradutor”.

Sobre o trabalho de tradução

O professor da Faalc relata que todo o trabalho de tradução foi muito bem discutido. “Em alguns aspectos, discutíamos para saber se a tradução havia ficado boa ou não, se era necessário fazer uma nota de rodapé ou não. Grande parte dos contos traduzidos foram em dupla, exigindo também um certo jogo de cintura, até porque cada um tem um fazer tradutório”, conta. Ele explica que, como o curso é uma licenciatura, há algumas disciplinas optativas que tem enfoque em tradução, especificamente teoria da tradução e história da tradução, sem a oportunidade de fazer a tradução. “A gente construiu o grupo Mão na Massa, um novo projeto no qual, todo ano, trazemos textos que não existem em língua portuguesa para a língua portuguesa. Também temos feito algumas oficinas. Os integrantes do projeto se reúnem a cada 15 dias, ou uma vez por mês, e fazemos um trechinho de um romance, normalmente o parágrafo inicial, até trabalhamos com poemas também. Cada um traduz, mostra a sua versão, comparamos e discutimos porque foi assim, quem fez diferente. É muito sutil a tradução, porque quando você lê um livro, um livro no idioma original, por exemplo, em inglês, a hora que você vai traduzir, se você vai traduzir literalmente, só que está escrito, acaba soando muito falso”, conta.

Outro cuidado é em relação às medidas. Por exemplo, nos Estados Unidos, a medida padrão é graus Fahrenheit para temperaturas e, no momento da tradução, é necessário fazer a conversão para graus Celsius. “Você pode manter a medida original, mas quem vai ler, vai fazer a conversão. Em relação às distâncias também, polegadas, pés, temos que trazer isso para centímetros, metros. Isso também é uma preocupação da tradução, e outras coisas, como expressões idiomáticas, se você traduz literalmente, a pessoa lê aquilo e fala, não entendi, não fez o menor sentido para mim, e aí é porque aquilo precisa ter uma adaptação, e essa adaptação é algo bem sutil, mas ao mesmo tempo muito relevante. É, tem essas questões culturais mesmo, coisas da sabedoria popular, que fazem sentido no Brasil, mas lá na África não vão fazer e vice-versa”, exemplifica.

O estudante de graduação João Gabriel de Oliveira Arruda está gostando da experiência em tradução. “Não estive desde o início do projeto Mão na massa, mas já pude acompanhar uma quantidade razoável de encontros onde realizamos exercícios e trocamos algumas vivências sobre leitura e tradução de língua inglesa para a língua portuguesa. Merece destaque a socialização que fazemos com os colegas, já que o projeto é aberto para diferentes semestres, turmas e mesmo pessoas de fora da universidade e do estado. A possibilidade de encontro e convivências agrega para um diálogo mais amplo, que vai para além da sala de aula de todos os dias. O professor Elton também nos dá dicas para trabalharmos com eventuais desafios que possam surgir, como evitar alterar o tom da obra original no decorrer da tradução, a menos que seja algo incontornável. Além disso, temos, através dele, contato com publicações e editoras estrangeiras que publicam obras de narrativa curtas em língua inglesa, a quem podemos oferecer nosso trabalho de tradução, concretizando assim um intercâmbio coletivo de saberes e experiências”, contou.

O mestrando em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação de Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas, Kim Patrice Santiago Sarmento conta que a experiência tem sido recompensadora. “O projeto Tradução de Contos da Revista Omenana: Speculative Fiction Magazine foi algo que não imaginava em participar, o projeto foi promovido pelo grupo de pesquisa Mão na Massa e foi recompensador. Sempre imaginei que tradução fosse algo muito robótico, mas quando fizemos uma oficina de tradução de um primeiro parágrafo de uma distopia chamada 1984, eu passei a ver a tradução de outra forma. Éramos 10 ou 12 na oficina, tivemos a mesma quantidade de traduções diferentes. Isso me deixou emocionado. A proposta do grupo era trazer textos inéditos em língua portuguesa. Onde na primeira edição, tive a honra de traduzir um conto da premiada autora Lauren Beukes, conhecida pelo livro Iluminadas (The Shining Girls), publicado no Brasil pela Editora Intrínseca e adaptado para série pela Apple TV+, estrelada por Elisabeth Moss (The Handmaid’s Tale) e Wagner Moura (Tropa de Elite). Como pesquisador de Ecodistopias e Afrofuturismos, participar de um projeto desse porte foi uma experiência que nunca imaginei. Ver meu trabalho dialogar com pesquisadores que admiro e contribuir para o acesso a essas narrativas foi, sem dúvida, uma das maiores alegrias da minha trajetória. Estou muito feliz e motivado com os caminhos que essa jornada está abrindo. Que venham as próximas edições! Estou super empolgado”, revelou.

Resultados e perspectivas para o futuro

Segundo Furlanetto, esse projeto foi muito engrandecedor. “Os estudantes ficaram muito felizes, eu fiquei muito realizado. O legal é que a gente pediu a permissão para a revista, a revista fez uma edição comemorativa agora de dez anos, foi então que fizemos um pedido para traduzir os contos, mas de forma bastante despretensiosa. Eu estava pensando que ia fazer todo esse processo educativo em cima da tradução, e que talvez ela fosse ficar na gaveta, porque a gente não teve uma verba para conseguir os direitos autorais, e tudo mais que envolve. Porém, a equipe da própria revista conversou com as autorias, conseguiu esses direitos para a gente”, conta.

Sobre o futuro, o professor conta que o grupo ainda está no processo de definição. “Eu já selecionei um livro, que é um livro que se chama The Feminist Utopia Project, com 57 narrativas, entrevistas, com pessoas falando sobre como seria um futuro no qual as mulheres têm todas as potencialidades”, revela. “Agora o meu processo principal, enquanto coordenador, é conversar com essa editora. […] mas, teria uma possibilidade, que é trabalhar com textos em domínio público, mais antigos, de autorias que já morreram há mais de 70 anos e que, de alguma forma, não foram traduzidos”, finaliza.

A edição em português pode ser conferida aqui.

Texto e fotos: Vanessa Amin