Pesquisadores desenvolvem método que utiliza Inteligência Artificial para diagnosticar leishmaniose

Estudo propõe procedimento mais rápido, mais barato e com maior eficiência na detecção da doença

A leishmaniose canina é uma doença transmitida por picada de mosquitos que pode causar uma série de problemas para a saúde dos cães. Para evitar que o quadro se agrave, é preciso levar o animal ao médico veterinário para realizar exames e, assim, ele receber o tratamento adequado.

Atualmente, a leishmaniose pode ser diagnosticada por meio de testes de microscopia, testes de sorologia e testes baseados na pesquisa de DNA do patógeno causador da doença (PCR), a depender de cada caso. Se o exame for inconclusivo, demorado ou apontar erroneamente outra doença, os animais sofrem por mais tempo e, em casos mais extremos, podem vir a óbito.

Perovskita, cachorra sob tutela de Cena, foi a inspiração para a descoberta do novo método

Quando o professor Cícero Cena, do Instituto de Física, passou por essa situação com Perovskita, cachorra sob sua tutela, ele começou a pensar em como os exames para a doença poderiam ser mais rápidos e eficazes. “Adotei uma cachorra que estava no Centro de Zoonoses e ela estava muito debilitada. O diagnóstico dela foi muito confuso no início, então comecei a pesquisar sobre [o assunto], procurei os colegas e saímos com a proposta de pesquisa que culminou em um novo método de diagnóstico”, conta.

Cena se uniu aos pesquisadores Gustavo Larios, Matheus Ribeiro, Samuel L. Oliveira, Thalita Canassa e Bruno Marangoni, do Grupo de Óptica e Fotônica da UFMS, vinculado ao Instituto de Física; Carla Arruda, do Laboratório de Parasitologia Humana da UFMS, vinculado ao Instituto de Biociências; Carlos Ramos, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da UFMS; e Matthew J. Baker, do Centro de Tecnologia e Inovação da Universidade de Strathclyde, no Reino Unido. Juntos, eles desenvolveram uma nova maneira para diagnosticar a doença e o estudo foi publicado no periódico científico Journal of Biophotonics e foi escolhido para ser capa da revista.

O método elaborado pelos pesquisadores examina o soro sanguíneo dos animais, sem utilização de produtos químicos, como os reagentes de testes rápidos, por exemplo. O soro sanguíneo é analisado por meio de espectroscopia no infravermelho com transformada de Fourier (FTIR), ou seja, passa por uma luz que investiga a resposta do biofluido do soro, captando as vibrações moleculares da amostra. Os testes foram aplicados em três grupos de cães: um infectado com leishmaniose, um sem infecções e um infectado com tripanossomíase, doença que geralmente possui reação cruzada com a leishmaniose nos testes rápidos por ambos os protozoários pertencerem à mesma família, o que resulta em diagnósticos errôneos.

Os materiais coletados foram submetidos a um programa de Inteligência Artificial, que busca por padrões para diferenciar cada cão dentro de cada grupo e os classifica. “Foi feita a classificação e retornou para gente qual era a acurácia do teste e a acurácia deste teste deu maior do que muitos dos que você tem no mercado, desses testes rápidos”, afirma Cena.

A espectroscopia foi utilizada para testar se a metodologia pensada pelos pesquisadores era capaz de diferenciar cães positivos para leishmaniose dos cães saudáveis, e foi observado que não só o método era capaz de fazer essa distinção, como também fazia uma melhor diferenciação entre Leishmania [protozoário da leishmaniose] e Trypanosoma cruzi [protozoário da tripanossomíase].

A pesquisa foi capa do periódico científico Journal of Biophotonics

Segundo o professor Carlos Ramos, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, como foi utilizado soro de animais sem qualquer tipo de tratamento ou reação prévia, havia a possibilidade dos resultados obtidos serem decorrentes de uma diferenciação genérica entre amostras de animais doentes em relação a animais sadios, logo, a análise apenas indicaria se um animal estava doente ou não, sem mais detalhes. “Para saber se os resultados observados eram realmente decorrentes da infecção por Leishmania, resolvemos incluir um grupo de amostras oriundas de cães infectados naturalmente por outro patógeno (Trypanosoma), que é da mesma família da Leishmania. Se essas amostras apresentassem, na metodologia utilizada na pesquisa, um perfil semelhante às amostras positivas para Leishmania, então a diferenciação era genérica (doente versus sadio) e não específica para leishmaniose. No entanto, observamos que essas amostras apresentavam um perfil distinto das amostras positivas para Leishmania e isso nos possibilitou concluir que há compostos diferentes no soro dos animais, passíveis de detecção por espectroscopia e capazes de caracterizar uma infecção específica por Leishmania, e diferenciá-la de infecções por outros patógenos, mesmo aqueles muito próximos, evolutivamente”.

A pesquisa demonstra que a técnica de espectroscopia no infravermelho com transformada de Fourier (FTIR) associada a métodos de Inteligência Artificial é capaz de distinguir animais infectados de não infectados rapidamente, sem a necessidade de utilização de reagentes específicos e de forma totalmente automatizada. “Assim, podemos ter no futuro equipamentos simples de FTIR, acoplados ou não a um computador para análise de dados, em que o operador adiciona uma pequena quantidade de amostra do animal suspeito ao aparelho, faz a leitura, os dados colhidos são analisados por meio de algoritmos de computador, e em alguns segundos estará disponível o resultado na tela do computador ou diretamente no aparelho. Isso com certeza vai reduzir os custos de testagem e aumentar a capacidade de processamento dos laboratórios públicos e privados”, diz Ramos.

Cena também aponta que com este procedimento, não há preocupações comuns aos testes que utilizam químicos. “Quando se usa reagentes para testes biológicos, além de ficar mais caro, tem também a validade, porque chega uma hora que expira o teste. O nosso teste é uma medida com luz e computador, então enquanto você tiver o aparelho funcionando, você tem o teste a custo zero, praticamente. O investimento inicial é a compra do aparelho, que é caro, mas na hora que você calcula o custo por amostra, fica muito em conta”, aponta. “O aparelho, depois que você o adquire, pode operar por até 10 mil horas sem precisar de manutenção. Isso que reduz os custos, porque uma amostra você mede em menos de cinco minutos”. 

De acordo com o professor, os softwares de Inteligência Artificial que fazem os algoritmos utilizados na pesquisa podem ser adquiridos com licença paga ou gratuita.

Demais pesquisas

O estudo iniciado com o diagnóstico de leishmaniose também pode ser utilizado como referência para avaliação da metodologia no diagnóstico de outras enfermidades animais ou mesmo humanas.

“Com base nessa pesquisa, já estamos realizando outras para avaliar essa metodologia no diagnóstico de enfermidades importantes para a bovinocultura, como a brucelose e tuberculose, que são inclusive alvo de programas oficiais de controle e erradicação por parte do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil”, comenta Ramos.

Quatro estudos decorrentes da pesquisa inicial já foram publicados:

  • FTIR spectroscopy with machine learning: A new approach to animal DNA polymorphism screening, 2021, Spectrochimica Acta Part A.
    DOI: 10.1016/j.saa.2021.120036
  • Fast and Accurate Discrimination of Brachiaria brizantha (A.Rich.) Stapf Seeds by Molecular Spectroscopy and Machine Learning, 2021, ACS Agricultural Science & Technology – Escolhido como capa da revista na edição de outubro.
    DOI: 10.1021/acsagscitech.1c00067
  • Intraspecific differentiation of sandflies specimens by optical spectroscopy and multivariate analysis, 2021, Journal of biophotonics.
    DOI: 10.1002/jbio.202000412
  • -Soybean seed vigor discrimination by using infrared spectroscopy and machine learning algorithms, 2020, RSC Analytical methods – Capa da Revista.
    DOI: 10.1039/D0AY01238F

Todos os estudos acima citados estão vinculados ao Sistema Nacional de Laboratórios de Fotônica (Sisfóton), por meio do Grupo de Óptica e Fotônica do Instituto de Física.

Texto: Leticia Bueno