Projeto Elegigo promove expedição em terra indígena para plantio de mudas de espécie rara de pau-santo

Até 24 de novembro, uma equipe composta por pesquisadores da UFMS, indígenas da comunidade Kadiwéu e brigadistas do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (PrevFogo/Ibama) estará em uma expedição para restauração socioecológica na terra indígena Kadiwéu. O intuito é plantar 425 mudas de pau-santo (Bulnesia sarmientoi), uma espécie ameaçada de extinção e que tem grande valor cultural para a comunidade, que foram produzidas durante quatro anos de estudos.

A ação faz parte do projeto Estado de conservação, restauração ecológica e cadeia produtiva de espécies vegetais nativas de interesse indígena no Pantanal, apelidado de Elegigo, que significa pau-santo na língua Kadiwéu, e desenvolvido no Laboratório Ecologia da Intervenção, do Instituto de Biociências (Inbio).

Conforme a professora do Inbio e coordenadora do projeto, Letícia Couto, a iniciativa tem destaque em várias frentes: social, por envolver a comunidade indígena nas ações; ambiental, por se tratar de uma espécie rara e ameaçada de extinção; cultural, pois a resina da árvore é usada na cerâmica tradicional do povo, gerando renda às artesãs; e científica, uma vez que a produção dessas mudas é inédita no país e serão plantadas em áreas prioritárias para restauração, mapeadas com o apoio do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do laboratório da UFMS.

“Dentre as espécies de interesse da comunidade Kadiwéu, o pau-santo (Bulnesia sarmientoi) se destacou pois é uma espécie de grande importância socioeconômica cultural com a fabricação de peças de cerâmica tipicamente envernizadas com resina obtida a partir do cozimento do lenho da árvore. A resina é usada para dar a cor preta no grafismo das cerâmicas elaboradas pelas mulheres do povo Kadiwéu, é um patrimônio do Pantanal, do Chaco e de Mato Grosso do Sul”, informa.

Ainda de acordo com a pesquisadora, essa espécie é muito rara e, no Brasil, é encontrada somente no Pantanal Chaquenho e em Mato Grosso do Sul. “Os poucos registros são restritos ao MS, a coleta do primeiro registro de frutos maduros do país foi aqui durante o projeto, em setembro de 2022, e o primeiro registro de flor do país foi em novembro de 2023, pelo brigadista Laercio Fernandes Ramos”, aponta. 

A planta tem crescimento lento e produz poucas sementes. Por ter uma madeira bastante densa, é também bastante explorada, por isso, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza, ela é globalmente ameaçada de extinção. No Brasil a espécie está listada no apêndice dois da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, o que significa que seu comércio internacional é regulado. “Vimos também em nossos estudos que os cenários de projeções de mudanças climáticas são avassaladores para esta espécie, por isso a importância de não deixarmos esta espécie de grande valor sociocultural entrar ou permanecer em listas como estas. Conservar e restaurar as espécies ameaçadas consequentemente repercute no habitat da espécie, ou seja, focar em uma espécie também reflete em conservar várias outras em conjunto”, ressalta Letícia. 

Comunidade

Os primeiros contatos com os Kadiwéu iniciaram ainda em 2018 no projeto Noleedi, coordenado pelo professor Danilo Bandini Ribeiro, no qual os estudos voltaram-se aos efeitos do fogo sobre a fauna e flora local e o manejo do fogo para combater os incêndios que degradam o bioma. À época, foram diversas as expedições à terra indígena e o contato com a comunidade fortaleceu-se. 

No projeto Elegigo, a comunidade Kadiwéu tem atuado desde a coleta de sementes e raízes até a realização de oficinas para a produção de mudas. “Depois de inúmeros testes no Laboratório Ecologia da Intervenção e no viveiro Flora do Cerrado da Prefeitura de Campo Grande, fizemos cursos práticos nas aldeias e conseguimos produzir algumas mudas no ano passado ao longo de três oficinas: uma de produção e coleta de sementes e beneficiamento, uma de produção de mudas e outra de transplante de plântulas. Fizemos isso com as crianças e cada muda que está lá desde então, tem o nome de uma criança para plantarmos juntos agora no verão”, explica a professora do Inbio.

Outro momento significativo durante o preparo das mudas foram as visitas de lideranças e representantes das instituições parceiras. A iniciativa teve financiamento do Projeto Estratégias de Conservação, Restauração e Manejo para a Biodiversidade da Caatinga, Pampa e Pantanal (GEF Terrestre – Fundo Global para o Meio Ambiente), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que tem o Banco Interamericano de Desenvolvimento como agência implementadora e o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade como executor financeiro. A proponente foi a Fundação de Apoio à Pesquisa, ao Ensino e à Cultura (Fapec) e a executora foi a UFMS. O estudo teve colaborações da comunidade Kadiwéu, da Associação de Brigadistas Indígenas da Nação Kadiwéu, da Associação das Mulheres Indígenas Kadiwéu, do Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração do Núcleo de Estudos do Fogo em Áreas Úmidas (Peld/Nefau); do PrevFogo/Ibama; do viveiro Flora do Cerrado, da Prefeitura de Campo Grande; do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da UFRJ; e do Culture of Resistance Network. 

Jornada

Entre os contratempos encontrados nos anos de estudos e pesquisas que antecederam a atual expedição, a professora Letícia Couto indica a dificuldade de acesso às populações de pau-santo, que ficam em áreas muito remotas e que, durante grande parte do ano, estão inundadas ou tomadas pelo fogo; a descoberta de que a floração e frutificação da espécie eram raras, o que dificultaria a coleta das sementes para a produção das mudas; e resultados desanimadores nos primeiros testes de reprodução. “As áreas onde existe pau-santo são de difícil acesso até para a maioria da comunidade, tem áreas que dependendo da época só é possível ir de cavalo, pois são longe das aldeias e estradas. Apesar disso, começamos a mapear as populações e fazer visitas ao longo do ano nos capões no Chaco. Ao todo, foram 163 indivíduos de pau-santo mapeados, georreferenciados e plaqueados. Nas expedições, começamos a monitorar a reprodução e, com isso, pudemos perceber que a floração e a frutificação eram bem raras, o que dificultaria a coleta de sementes para produzir mudas”, lembra. 

Seguindo com as visitas, os pesquisadores realizaram então a primeira coleta do fruto do pau-santo, em 2022, e da primeira flor, em 2023. “Nós explicamos por mensagens ao brigadista Laercio Fernandes Ramos, que foi quem coletou a flor, como produzir o material para colocar no museu das plantas, o herbário, e como secar a amostra e nos enviar para depositarmos na UFMS. Hoje ela está no herbário da Universidade, e está disponível para todos os pesquisadores do mundo poderem estudar”, relata orgulhosa. 

A jornada continuou com testes para reprodução por estacas na UFMS, no viveiro da prefeitura e na Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural. “Em um grande dia, nossos empenhados alunos da pós-graduação conseguiram encontrar uma matriz com significativa quantidade de frutos. Coletamos todas as sementes possíveis e iniciamos vários experimentos. Assim, entendemos que a muda demora pelo menos um ano para ter um tamanho mínimo para ser plantada. Com isso, conseguimos inicialmente oito mudas inéditas de pau-santo, produzidas na UFMS e no viveiro municipal em colaboração, que plantamos no verão de 2024 na Terra Indígena Kadiwéu, com apoio de brigadistas do PrevFogo/Ibama, em escolas, aldeias e áreas prioritárias de restauração mapeadas pela equipe e parceiros, e, com surpresa, este evento foi compartilhado pela página da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva”, rememora.

Plantio

Com todo o avanço no conhecimento e técnicas desenvolvidas, os pesquisadores do projeto Elegigo seguiram com os estudos e produziram as 425 mudas que serão plantadas na terra indígena Kadiwéu. O plantio será em áreas prioritárias para restauração pós-incêndios, mapeadas pela equipe e com consulta às áreas que os indígenas indicaram, bem como próximas às residências, especialmente das ceramistas, para facilitar o acesso e o uso na cerâmica, fortalecendo a preservação cultural e a conservação da espécie ameaçada. 

A professora Letícia Couto reafirma que todo o estudo e desenvolvimento do conhecimento só foram possíveis com a colaboração de todos os parceiros e com o recurso financeiro para as expedições. “A ciência que representamos aqui é essencial para o avanço das pesquisas não só localmente, mas que possam ajudar em outros projetos em outras partes do mundo. E tudo isso graças à dedicação da comunidade e de nossos estudantes cientistas, que juntos estão contribuindo para um mundo mais sustentável, com um retorno direto à população. Afinal, fazemos pesquisa para a população e esse é o papel da nossa Universidade. Esperamos ver essas mudinhas crescendo não só nas áreas prioritárias, mas também junto das crianças que terão esse convívio com a restauração e o entendimento de cuidar tanto da natureza quanto da cultura. Quem sabe daqui a muitos anos, algumas cerâmicas poderão ser feitas a partir dos galhos desses paus-santos que surgiram assim com tantas mãos”, deseja.

Texto: Ariane Comineti e Heloísa Garcia

Fotos: Alicce Rodrigues e arquivo do projeto Elegigo