Em cotutela com Université d’Angers, tese avalia resposta de mamíferos herbívoros no Planalto da Bodoquena frente aos usos do solo

Com uma beleza cênica de encher os olhos, o Planalto da Serra da Bodoquena reúne rica fauna de relevante importância ecológica que começa a ser impactada pelas mudanças nos usos do solo.

Em uma primeira iniciativa de cotutela entre o Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da UFMS e o Programa de Pós- Graduação em Environment (Meio Ambiente) da Université d’Angers, a pesquisadora Cyntia Cavalcante Santos apresentou em tese de Doutorado estudo sobre “Terrestrial Herbivore Mammals in a mosaic of Cerrado, Atlantic Forest and land-use changes” (Mamíferos herbívoros terrestres em um mosaico de Cerrado, Mata Atlântica e mudanças no uso da terra).

“O meu projeto, o primeiro na Bodoquena com amostragem de espécies de pequeno a grande porte de mamíferos herbívoros, avaliou como a resposta das espécies está sendo dada frente os diferentes usos do solo, por causa das transformações que estão acontecendo”, afirma Cyntia.

Com orientações dos professores franceses Pierre-Cyril Renaud e Olivier Pays-Volard (Université d’Angers) e do professor Fabio Roque (Inbio), o projeto de pesquisa, que também faz parte do Programa Pesquisa Ecológica de Longa Duração (Peld https://peldbodoquena.wixsite.com/home), procurou apontar as respostas das espécies ao longo do gradiente de perda de cobertura de florestas, para os diferentes tipos de resposta dos land uses (pastagem, agricultura), e como essas respostas estão acontecendo.

“Colocamos pequenas armadilhas, que chamamos de lifetraps e também câmeras trap, e conseguimos tirar mais de 300 mil fotos da fauna local, formando um banco de dado muito forte, o primeiro desse porte com espécies de mamíferos no contexto do Planalto da Bodoquena”, expõe a pesquisadora.

Inicialmente, Cyntia realizou uma análise geral do Cerrado e procurou demonstrar como as 151 espécies da comunidade de mamíferos estavam respondendo às transformações antrópicas no Bioma.

Em seguida, as coletas foram feitas no Planalto da Serra da Bodoquena, incluindo áreas dentro do Parque Nacional da Serra da Bodoquena e também em áreas privadas (cerca de 50 propriedades). Após reunir os dados de coletas em campo realizadas durante 18 meses ininterruptos, em 18 paisagens, cada uma com 5 mil hectares, foi possível montar o banco de dados e analisar se as espécies respondiam numa escala menor ou maior.

Por último, a pesquisadora avaliou como a ocupação das espécies está ocorrendo nesse gradiente que abrange os municípios de Jardim até Bodoquena.

Desdobramentos

No segundo capítulo, os animais foram divididos em quatro classes: de pequeno porte, especialista na dieta e de hábitat florestal; médio porte, especialista na dieta e de hábitat florestal; médio porte, generalista na dieta e de hábitat florestal e aberto; e grande porte generalista na dieta e de hábitat florestal e aberto.  No terceiro capítulo foram incluídas na pesquisa as 23 espécies de mamíferos herbívoros, entre pequeno, médio e grande porte.

Os especialistas geralmente são animais mais exigentes quanto a dieta e vivem em determinado local, normalmente mais preservado, enquanto os generalistas apresentam hábitos alimentares bem diversificado, acrescentando muitas vezes alimentos à dieta de forma oportunista, assim como têm habitat mais variado.

 “Trabalhamos com uma grande variedade de tamanho e diversificação das espécies. Conseguimos ver como elas estão dispersas no ambiente e que algumas respondem mais fortemente do que outras com a pressão ambiental”, diz Cyntia.

A partir desses quatro grupos, que têm tamanho de corpo, de dieta e uso do ambiente variado, foi possível encontrar a resposta da escala com uso de métricas de paisagem.

Para a questão da escala, a pesquisadora descobriu que espécies pequenas, como por exemplo a cutia (Dasyprocta azarae), espécie mais especialista de vegetação de floresta, frugívora, respondeu numa escala muito menor.

“Usamos três métricas de paisagem e quando fizemos o cálculo das análises, a cutia respondeu na menor escala de 500 metros. A anta e o veado catingueiro responderam numa escala de 750  e 1000 metros, respectivamente, ou seja, em uma escala mais ampla, porque têm maior capacidade de dispersão. Essas duas espécies são animais com corpo maior, se alimentam de variados itens que não só frutas, podendo comer folhas e caules, bem como outros itens alimentares ao longo do gradiente”, explica.

Ou seja, espécies menores têm mais dificuldade de se locomover e ir para ambientes mais homogêneos em estrutura vegetal. “Se há pastagem com fragmentos de florestas próximas, talvez esses animais até consigam migrar de um lado para o outro, mas quando a matriz vai mudando muito e vai ficando mais homogênea, o bicho que vive numa escala menor vai ter muita dificuldade de sair a longas distâncias, por isso essas espécies começam a ficar isoladas”, completa a pesquisadora.

Também foi medida a porcentagem de cobertura de floresta que existia em cada unidade amostral. “Com relação a isso, o queixada, o veado catingueiro e o veado mateiro responderam negativamente quando existe perda de habitat, ou seja, são muito dependentes florestais, são espécies muito sensíveis. Não trabalhamos com o limiar de perda de vegetação, mas com a ocupação, por isso fica complicado dizer qual a medida exata de floresta para cada espécie, mas sabemos, pela literatura, que essas espécies tendem a precisar de mais de 30% de floresta, no mínimo”.

De acordo com a pesquisadora, estudos demostram que o nível de desmatamento está aumentando e as quantidades de remanescentes florestais em muitas propriedades estão em déficit na Bacia do Alto Paraguai, o que é bastante preocupante.

“À medida que se entra num sistema como o Planalto da Bodoquena, ainda percebemos bastante conectividade na vegetação que encontra-se preservada possivelmente porque é uma região turística, onde Áreas de Preservação Permanente que fazem as conexão de rios permitem a sobrevivência de várias espécies, incluindo aquelas de áreas abertas mas também as espécies mais sensíveis à perda de vegetação nativa”, aponta Cyntia.

Em termos de conservação, Bodoquena ainda pode ser considerada preservada, mas está sofrendo grandes mudanças pelo desenvolvimento. Ao longo do tempo, segundo a pesquisadora, isso pode mudar drasticamente se não houver medidas de contenção de desmatamento, de planejamento das paisagens nas propriedades rurais, de preservação mínima das reservas legais e das áreas de proteção permanentes (APPs).

 “O desenvolvimento não é ruim, é importante, precisa de todo um arranjo local para se criar uma dinâmica, mas quando isso começa a afetar a qualidade dos ecossistemas, começamos a perceber que a qualidade ambiental também afeta a qualidade de produção. Então, toda essa mudança, essa dinâmica, é muito regida por como se utiliza uma fazenda, como se faz o manejo da área, como se organizam os espaços verdes, como se mantém a reserva legal e os rios funcionando”, analisa.

É muito importante ainda considerar que as espécies não respondem de forma igual. “Aqui temos uma diversidade muito grande. Bodoquena tem frutos o ano todo e temos uma variedade de ambientes e habitats com espécies de características morfológicas e fisiológicas que respondem de diferentes formas, não há como planejar apenas a partir de uma única espécie”.

Cyntia esperava, por exemplo, que o cateto respondesse muito semelhante ao queixada, por serem pecarídeos de hábitos alimentares muito parecidos, mas isso não aconteceu nem em relação a perda de vegetação, sequer nas métricas de paisagem, o que demostra que a interpretação do que é floresta para as espécies é muito diferente. Para essa espécie, uma árvore, como o acuri, pode ser um recurso, está no meio do pasto, tem frutos. Esse animal também cavouca e consome raízes. Assim, os catetos aparentemente conseguem ocupar melhor toda essa dinâmica de gradiente de recurso.

A funcionalidade da floresta muda dependendo das espécies que as ocupam ou que acabam por serem extintas. “Na Bodoquena, há uma grande heterogeneidade, tanto da oferta de recursos quanto de habitats. Mesmo a matriz de soja, de pecuária, funciona como fonte de recursos para algumas espécies. Então, a variação de uso é muito diversificada, por isso encontramos diferentes espécies de mamíferos herbívoros em todo lugar”.

Com a prospecção de um milhão de espécies de animais e plantas ameaçados de extinção, de acordo com o relatório da Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES/ONU), a preocupação dos pesquisadores com a preservação é constante.

“Se perdemos uma espécie que possui uma diversidade funcional muito específica, quem fará o seu papel? Será que há um substituto? E se não tem, como esse ambiente começa a se transformar?”, questiona a pesquisadora.

O desconhecimento sobre as espécies, seu comportamento alimentar e como lidam com as mudanças antrópicas é um dos entraves a preservação dos animais. “Há muita confusão no campo entre os mamíferos herbívoros, como a queixada, o cateto e o porco monteiro, que são geralmente tratados como porco. No entanto, os dois primeiros são nativos e essenciais para as florestas como as conhecemos hoje, atuando como dispersores de frutos. Já o porco monteiro, ou javaporco, uma espécie introduzida, causa danos aos ambientes por serem oportunistas e competirem com espécies nativas. O pensamento está mundando! Fazendeiros mais jovens e aqueles que tem maior acesso à informação começam a mudar esse conceito: acham importante a mata, um pasto arborizado porque beneficia o bem estar animal. É uma época de transição, positiva e ao mesmo tempo ainda conflituosa”.

Conclusões

A pesquisa apurou que para o Cerrado a agricultura é o land use que mais impacta as espécies negativamente, seguida da agricultura associada com pastagens e das rodovias, pelos atropelamentos.

Segundo artigos internacionais publicados em 2019, a pegada humana de plantio, de áreas convertidas para pastagens, e rodovias é extremamente alta no mundo todo e isso está causando uma pressão enorme sobre as espécies de animais. “De 50% a 80% das espécies de mamíferos que ocorrem no cerrado estão destinadas a desaparecer, porque a pressão é muito forte, essa conectividade vai se perdendo e ocorre um rompimento e escassez, diminuindo o fluxo gênico, impedindo as espécies de terem tempo hábil para se reproduzir”.

Os resultados da pesquisa são muito importantes para a região, na borda da Planície Pantaneira. A proposta da pesquisadora é disseminá-los a partir de palestras, com apresentação do banco de dados, informações sobre as espécies encontradas na região.

As coletas permitiram ainda a formação de um banco de dados genéticos como pelos e fezes, além de ectoparasitas, que ainda poderão ser trabalhados em novas pesquisas.

“Essa zona é muito importante porque tem uma interface com o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, além de no entorno existirem outras Unidades de Conservação como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), monumentos naturais, que certamente funcionam como zonas fonte dessas espécies de mamíferos herbívoros que conseguem se locomover e colonizar outros espaços no Planalto da Bodoquena”, diz Cyntia.

Texto: Paula Pimenta