Incidência de tuberculose é cem vezes maior em presídios, revela pesquisa

Um problema crônico de saúde agravado pela situação de extrema vulnerabilidade. A bactéria da tuberculose (Mycobacterium tuberculosis) encontra nos presídios o ambiente ideal para disseminação: celas superlotadas, assistência de saúde inadequada, uso de álcool e diversas comorbidades entre os apenados. Em Mato Grosso do Sul, o contágio e o tratamento da doença entre as pessoas privadas de liberdade estão sendo investigados pelo grupo de pesquisada coordenado pelo professor da Faculdade de Medicina, Julio Croda.

Em atividade desde 2013, o estudo “Estratégias para controle de tuberculose nas prisões” teve a pesquisa renovada por mais cinco anos com financiamento americano do National Institutes of Health ,em parceria com o pesquisador da Universidade de Stanford, na Califórnia, Jason Andrews. Também foram firmados termos de cooperação com a agência que administra as prisões no Estado e com a Secretaria de Estado de Saúde.

Atualmente, a equipe tem em torno de 40 membros, que incluem colaboradores bolsistas, médicos, enfermeiros, biólogo e farmacêutico da Universidade, da Fundação Oswaldo Cruz e da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Eles atuam em dois presídios de regime fechado masculino de Campo Grande, que apresentam uma das maiores incidências do Estado, e oferecem diagnóstico precoce, tratamento e assistência. Ao longo de 10 anos de pesquisa, mais de 10 mil pessoas foram atendidas.

Com base em resultados de pesquisas científicas realizadas em uma década nos presídios de Mato Grosso do Sul, os pesquisadores calculam que a incidência da tuberculose entre as pessoas privadas de liberdade é cerca de 100 vezes maior do que a população em geral. O indivíduo entra no presídio e se infecta em curto período de tempo.

A transmissão da tuberculose para além das grades também foi confirmada pelo sequenciamento genômico e demonstra que as prisões funcionam como amplificadores da doença para o restante da comunidade. Conforme o Ministério da Saúde, dados de 2019 demonstravam que 84% dos doentes que estão em liberdade adquiriram tuberculose na prisão.

A partir da modelagem matemática realizada pelos pesquisadores, foi possível identificar cinco estratégias que poderiam surtir efeito dentro e fora das prisões. Entre essas estratégias, a triagem em massa poderia reduzir a incidência em quase 50% dentro das prisões, e de quase 20% na comunidade geral, num prazo de 10 anos. “Também identificamos que a triagem para doença ativa e latente no momento da saída do sistema pode ser uma intervenção a ser empregada para diminuir a transmissão para comunidade. Estamos analisando neste momento se seria adequado tratar a tuberculose latente no momento da saída do sistema e dessa forma impactar na transmissão para comunidade. Contudo, é importante destacar a necessidade do fortalecimento das ações da Atenção Primária de Saúde, na investigação de casos na comunidade, principalmente entre familiares de privados de liberdade que visitam as unidades”, analisa Julio Croda.

“Outro problema é a intensa movimentação dos privados de liberdade entre as unidades, o que facilita a disseminação da doença. Esses achados reforçam a necessidade urgente de elaborar estratégias de controle de tuberculose em cenários de elevada carga da doença”, avalia o pesquisador da UEMS, Everton Ferreira Lemos.

Desafios

O mais recente Boletim Epidemiológico divulgado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Governo Federal revela que a tuberculose permanece sendo um desafio, agravado pela emergência da pandemia de covid-19 que reverteu anos de progresso no controle da doença. Até 2019, a tuberculose era a primeira causa de óbito por um único agente infeccioso, superando inclusive o HIV/Aids. A estimativa é que em 2020 a doença tenha acometido 9,9 milhões de pessoas no mundo. Naquele mesmo ano, o número de mortes registradas no Brasil superou 4,5 mil vítimas.

O tratamento da tuberculose ativa dura no mínimo seis meses e envolve uma série de antibióticos, oferecidos gratuitamente pelo SUS, e enfrenta obstáculos como o abandono e o uso incorreto dos medicamentos, que podem tornar os germes mais resistentes. Na avaliação dos pesquisadores, os estudos têm contribuído para enfrentar os desafios e responder questionamentos importantes, como, por exemplo, melhores estratégias de diagnósticos e de custo, além de maior agilidade entre diagnóstico e tratamento.

O problema é que a implantação dessas ações requer número de profissionais suficientes e este tem sido o principal fator limitante para a expansão das estratégias dentro e fora das prisões. Em contrapartida, os pesquisadores acreditam que a implantação do sequenciamento genômico de micobactéria da tuberculose pelo Laboratório Central de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul será um dos maiores avanços proporcionados pela pesquisa. A implementação desta tecnologia auxiliará no entendimento de aspectos ligados à doença e à sua transmissão, pois é um método de diagnóstico com potencial e diferentes possibilidades de uso na tuberculose. Ou seja, além de detectar as mutações de resistência do bacilo é também um instrumento capaz de auxiliar nos estudos de transmissão da doença.

Apesar do risco para todos, o enfrentamento da situação esbarra na desinformação. Além das condições de insalubridade, as pessoas privadas de liberdade enfrentam a opinião dos que acreditam que nos presídios não deveria haver direitos, inclusive à saúde. “Essa é uma fala preconceituosa e excludente. O tempo médio de encarceramento é de dois a três anos. E o que acontece dentro das prisões no que diz respeito à tuberculose impacta toda a comunidade”, finaliza Julio Croda.

Texto: Adriano Furtado
Fotos: arquivo dos pesquisadores