Estudo analisa dispersão de sementes por peixes carnívoros

Trabalho realizado por egressa do curso de Ciências Biológicas é novidade no mundo e trata da diploendozoocoria envolvendo diferentes espécies do Pantanal

A dispersão ou transporte de sementes é importante para cerca de 70 a 90% das espécies de plantas e está ligada diretamente à conservação dos ecossistemas de uma determinada região. Entre os agentes dispersores ou jardineiros estão pássaros, mamíferos, insetos, roedores, vento, peixes, entre outros, por isso, a diminuição da população desses animais ou até mesmo sua extinção pode provocar perdas de serviços ecossistêmicos fundamentais para humanidade.

Estudos sobre o processo de dispersão e sua ligação com a manutenção de florestas têm sido desenvolvidos por pesquisadores de diversos países. Em especial, nos sistemas aquáticos, há um crescimento de trabalhos que tratam da importância dos peixes que se alimentam de frutas (frugívoros) como dispersores. Na UFMS, a pesquisa conduzida pela bióloga Andresa Kreutzer como trabalho de conclusão de curso foi o primeiro a analisar a dispersão de sementes ingeridas por espécies de peixes carnívoros tropicais.

“Já sabemos que os peixes foram os primeiros vertebrados a realizar a dispersão de sementes, agindo como ‘jardineiros da natureza’, então surgiu um questionamento, será que todos os peixes fazem isso? Estudos mostram que nem todos, alguns são predadores de sementes, e as destroem ao consumir o fruto. Então, fomos além e nos perguntamos se peixes carnívoros também poderiam exercer esse papel, mesmo sem consumir os frutos. Outros estudos com mamíferos, mostram que carnívoros, como o puma, são capazes de liberar sementes viáveis a serem germinadas ao se alimentarem de pássaros que consumiram frutos e tinham sementes no seu trato digestivo. Portanto, levamos isso para os peixes, e decidimos estudar se peixes carnívoros que se alimentam de peixes frugívoros com sementes no trato digestivo, seriam capazes de liberar essas sementes capazes de germinar”, explica Andresa

Frutos da embaúba foram colhidos em parque na Capital

Este processo de dispersão no qual duas ou mais espécies de animais ingerem as sementes em sequência é chamado de diploendozoocoria. “Os estudos atuais têm registrado a dispersão feita por peixes frugívoros, mas nenhum lidou ainda com a diploendozoocoria. Nosso estudo é o primeiro sobre diploendozoocoria entre peixes tropicais”, ressalta Andreza. “Avaliamos a viabilidade de sementes de Cecropia pachystachya Trécul (Urticaceae), conhecida popularmente como embaúba, depois de serem consumidas por um peixe carnívoro que se alimentou do peixe frugívoro que tinha a semente no seu trato digestivo”, complementa.

De acordo com Andresa, foram realizados experimentos envolvendo as espécies que ocorrem no Pantanal, determinando a porcentagem de germinação de sementes que não passaram pelo trato digestivo e aquelas que passaram apenas por um primeiro consumidor se eram diferentes das que foram consumidas por um animal secundário. “Alimentamos o primeiro peixe consumidor Astyanax lacustris ou lambari com os frutos da embaúba e depois alimentamos peixes carnívoros com o lambari que já tinham as sementes em seu trato digestivo. A hipótese era que os peixes carnívoros poderiam atuar como dispersores efetivos por consumirem frutas que foram comidas por suas presas”, diz a bióloga.

Andresa explica que os frutos foram colhidos em setembro de 2019 em um parque localizado em Campo Grande. “Só foram utilizados os frutos que estavam caídos recentemente no chão. Os frutos foram limpos em água corrente e refrigerados por um dia até o início dos experimentos. Após, selecionamos 30 lambaris com no máximo 7 cm comprados de uma loja de iscas e que foram mantidos em um aquário com temperatura constante de 25ºC e alimentados por 60 dias para adaptá-los ao novo ambiente. Em setembro, eles foram alimentados com os frutos de embaúba, picados em pequenos pedaços para que pudessem ingerir as sementes”, fala.

“Uma hora e meia depois, coletamos as fezes com a ajuda de um sifão no fundo do aquário para verificar a presença das sementes e realizar os testes de germinação. Depois, utilizamos três espécies de peixes carnívoros: Hoplerythrinus unitaeniatus ou traíra; Sorubim lima ou surubim e Pimelodus pantaneiro que são predadores comuns no Pantanal. Cada uma das três espécies foi colocada em um tanque de mil litros, sendo seis peixes por tanque. Eles foram deixados em jejum por 48 horas e depois foram alimentados com os lambaris que comeram as frutas no mesmo dia. Foram inseridos dez lambaris em cada tanque. No dia seguinte, coletamos as fezes para verificar a presença de sementes. Uma segunda coleta foi realizada 24 horas após a primeira”, explica Andresa

Segundo a bióloga, foi verificado se havia sementes nas fezes de cada espécie. Quando encontradas, as sementes foram lavadas em água destilada, deixadas por 5 minutos em uma solução de hipoclorito de sódio para eliminar os fungos e, depois, lavadas mais uma vez em água destilada. “O processo de germinação ocorreu nas sementes coletadas diretamente das frutas e das fezes dos lambaris. As que foram coletadas nas fezes dos peixes carnívoros não germinaram”, comenta Andresa.

Dados da pesquisa, mostram que de 100 sementes coletadas diretamente das frutas (grupo controle), 86 germinaram. Das 100 coletadas das fezes do lambari, 78 germinaram. “Isso aponta que o lambari pode ser considerado um dispersor eficiente, já que uma boa porcentagem das sementes se mostrou viável mesmo após o processo de digestão. Os resultados evidenciaram também que ao passar pelo sistema digestivo dos três peixes carnívoros, de alguma forma, o mecanismo de germinação das sementes foi destruído. Apesar do estudo ser consistente para essas três espécies de peixes carnívoros, estudos adicionais devem ser conduzidos para analisar outras espécies de plantas, frugívoros e predadores no ambiente tropical, especialmente aquelas que conectam os ecossistemas aquáticos e terrestres como pássaros aquáticos, jacarés e crocodilos”, destaca Andresa.

Para sua formação como bióloga, Andresa conta que o estudo foi essencial porque possibilitou a união de conhecimentos obtidos em diferentes disciplinas durante a graduação. “Esse estudo foi essencial para ligar as diferentes frentes de aprendizado obtidos durante a graduação e conseguir ver na prática a imensa interação das áreas úmidas e habitats terrestres. Estudos como esse são essenciais para entender melhor as relações entre animais e vegetação e identificar o papel ecológico dessas espécies na preservação da mata ciliar. Estudos nesse contexto com outras espécies de peixes são necessários para que identifiquemos aqueles com maior ou menor impacto nas áreas ribeirinhas e poder nortear tomadas de decisões em relação à preservação de espécies chave”, ressalta.

Andresa foi orientada pelo professor do Instituto de Biociências (Inbio) Fábio Roque para o desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso e também fez parte do grupo de pesquisa sobre peixes envolvendo cientistas da UFMS e outras instituições. “Um dos resultados do trabalho foi a produção de um artigo em conjunto com o grupo de pesquisadores em uma revista importante na área de biodiversidade tropical. O trabalho é uma novidade no mundo e foi publicado como insight. O mais legal de tudo isso é que foi feito por uma estudante de graduação. Também tivemos a colaboração de um pesquisador americano”, explica o professor. Fábio ressalta ainda que o estudo está ligado com o Programa Institucional de Internacionalização (Print) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) na UFMS. O artigo foi escrito por Andresa, com coautoria do professor Fabio e os pesquisadores Alan Covich da Escola de Ecologia Odum, da Universidade da Georgia (EUA); Francisco Severo-Neto e Rudi Ricardo Laps, do Inbio UFMS; Heriberto Gimênes Junior do Laboratório de Ictiologia do Imasul; e José Sabino da Universidade Anhanguera Uniderp e publicado em agosto na Biotropica, periódico ligado a Associação de Biologia e Conservação Tropical (confira o artigo aqui)

“Ter participado de um grupo de pesquisas sobre peixes foi o pontapé inicial para levar a ideia a frente e realizar os experimentos para o trabalho de conclusão de curso e publicá-lo. Portanto, a inserção em um grupo de pesquisa com colaboração internacional, me permitiu vivenciar todo o processo de fazer ciência, desde pensar nas perguntas e hipóteses, passando pelo desenho amostral, análises, escrita e finalmente a publicação e comunicação dos resultados. Agradeço imensamente ao professor Fabio Roque, meu orientador, que foi quem me inseriu nesse grupo de estudos e pela sua constante dedicação em estimular os estudantes a seguirem naquilo que se identificam e gostam de estudar. Ele é uma grande inspiração para mim!”, avalia Andresa. Ela deve continuar as pesquisas envolvendo o papel ecológico dos peixes. “Vou continuar trabalhando com peixe e seu papel ecológico, mas agora em oceanos, minha intenção é partir para o mestrado em oceanografia biológica”, finaliza.

Texto: Vanessa Amin

Fotos e imagens: Andresa Kreutzer